Virado
Quando cheguei tudo estava virado. Virou minha vida, meu sexo, minha emoção. Virou as panelas da cozinha, a televisão, as minhas roupas no armário. Virou meus cabelos e quebrou a Nossa Senhora da estante. Virou as coisas todas podendo todas serem viradas.Virou minha saliva enfurecida e transformou-a em mel. Virou meu olhar resignado e transformou-o em luz. Virou minha paixão e transformou-a numa maior ainda. Estava tudo virado, absolutamente virado. Quebrou meus membros e arrancou meus dentes. Via-me paulatinamente sendo reconstruída, nova e igual, pura e nada mais.Quando cheguei tudo virou tesão. Virou cachaça com feijão. Virou. Virou sabor e pimenta de cheiro. Virou. Virou meus seios como duas hélices. Virou meu nariz, minha língua, meus olhos. Virou o monstro doce. O monstro que não é monstro. Virou o protomutante embevecido da aurora. Virou o louco endiabrado. Virou a rosa cheirosa e a lama mole. Virou a serpente, o lobo, a raposa. Virou o bicho selvagem. Virou regulação. Auto-regulação. Cosmo, microcosmo, macrocosmo. Virou a sem culpa. O amor sublime. Virou a lágrima sonora, o choro derramado. Pranto de felicidade. Descarga energética. Fim da escassez. Fim do medo. Virou o grito suave, a ferida e tudo mais. Os pontos de ouro, a poesia no corpo.Virou. Virou tudo. Completamente.
Allana Moreira e Silva
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