Friday, August 25, 2006

Premonição...

Espelho meu conflito no seu rosto e vejo
todo esforço que há em mim.
E em ti reconheço o remorso,
Triste fio que me conduz ao fim.

Ao deparar-me na sacada explodo...
Enjôo, medo, gozo
Aceno àquele que me deu o pouco,
pouco espaço para um dia ruim.

Nele vejo meus pés descalços
e os tristes passos de um querubim.
Seco os olhos neste meio compasso,
transitando entre o susto e o percalço.
Num desejo súbito de beijá-lo, enfim.

Pulo da altura de um milhão de lapsos,
sobrevoando pálida neste céu rasgado...
E sinto o cheiro do seu cheiro em mim.

Pairo mirando atordoada,
tanta luz acumulada
na vontade louca de dizer-lhe sim.

Allana Moreira e Silva

Thursday, August 17, 2006

OPIADA



Contei-lhe uma piada de mexer o coco
Dei-lhe ópio pra que entendesse um pouco...

Allana Moreira e Silva

Wednesday, August 16, 2006

Bar

O doloroso sulco lábio-nasal
junto à garrafa morta

Mário Quintana

Ao amigo


Amigo, sonhei com você noite dessas...
Grande saudade me bateu...no sonho e quando acordei.
















Sonhei o sonho dos loucos
Sonhando com a volta
do maior de todos.

E nesta morte-vida
quase sem acordo,
sonhei com o desejo
de poder vê-lo de novo.

Sonhei, nada mais que sonhei.
Saudando a morte,
a vida,
o eterno retorno.

E vivi tudo
que tinha vivido pouco.

Allana Moreira e Silva

Chora Criança


À uma criança especial de Santa Inês - Ba

Chora criança, chora...
Chora o amor
que sua mãe te negou.

Chora o desejo de ser
aquilo que você não herdou.

Chora criança, chora...
Acredito no seu lamento
e lamento.
Lamento com alma
que não te tocou.

Por que criança, tanto sofrimento?
Seriam suas lágrimas meu maior tormento?

Chora criança, chora...
Chora com a dor precoce que te beija
E beija a flor
na flor da tua queixa.
Queixa-se da atenção
E da agonia que não te deixa.

Aperta criança,
esse coração maldito.
Dita as regras
por um amor infinito.

Allana Moreira e Silva

Mostre-me


Mostre-me suas tristes penas
Se existirem estas tais penas para mostrar-me.
Mostre-me o seu estranho,
Recluso espaço desgarrado
Fútil imperfeito efeito
Causa débil do acaso.
Mostre tudo.
Preste vil favor a estes olhos insones
Põe pupilas descascadas nas entranhas
E veja minha pulsação inútil.
Arranca-me a língua morta
E diz-me o nada feito.
Diz-me nada.
Nada mais de amor.
E sorri com o seu sarcasmo
Dos que choram com a vontade de um cão.
E saia nu, carregando suas labaredas.
Mostre-me este fogo sem calor.
Sua boca desdentada acena-me
E com ela assopro um último hálito quente.
Aqueço pequenas gotas de lágrimas
E lanço-as às suas narinas para que sinta-as,
Mas que sinta com o olfato apurado
De animal predador.
E com isto sinta o gosto de cada átomo desvairado
Cuspindo indigesto este doce duro
E amargo fato
De que nada é puro,
Nem demasiado pútrefe.
Teme a mão que exala o último refúgio
E mostra,
Mostra tudo.

Allana Moreira e Silva
apagar

Em homenagem ao amante-alcóolatra-poeta-samurai


parem
eu confesso
sou poeta

cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face

parem
eu confesso
sou poeta

só meu amor é meu deus

Paulo Leminski
eu sou o seu profeta

As Ondas



Vendo por sobre o horizonte, ela se alegra e sorri,piscando levemente os olhos ofuscados...e pensa como seria bom ser o horizonte.Esquece de si por alguns segundos e sente-se bem, balançando as pernas despreocupadas e os dedinhos apalpando o vento.Lambe os lábios e neles o gosto do sal. O gosto do mar que é a sua própra boca. Alisa os seios e aperta-os. Aperta todo, de mão cheia e aperta o próprio corpo, sentindo toda areia, toda praia, toda mole. Ao sussuro do vento que passa, vê-se espalhada pelo espaço, levitando suas partículas. E sente a língua poderosa daquele que conhece o seu corpo, e pensa ser tomada por pequenas ondas de água quente, deslizando sobre a pele, umedecendo e acalmando suas partículas revoltas. E mergulha na espuma doce do seu líquido, do pequeno mar lânguido de um homem excitado, tremulando vagamente suas espumas sobre as pedras. Mar revolto, agitado, inundando a praia solitária. E ela respira de amor, inundada pelo líquido macio entre as pernas, escorrendo e pingando na vazante. Seca lentamente, crispando sob o sol.
Allana Moreira e Silva

Lua


Lua...
Trôpega, ela vai rastreando os espaços escondidos. Enlameada de tanto amor, tanto fez como tanto faz, sabendo-se perdida no escuro em que se encontrou. Vira-se ao mundo como se vira pra dentro, e nada enxerga de visível, ela, que sabe conversar com o vento. Mais do que ondas de cabelos, ela se banha nos perfumes cintilantes da existência alheia, e no seu próprio perfume se vê submersa. Deleites de vinhos e sexos, e umidades estonteantes. Ela continua trôpega no seu chão de mercúrio. E se banha no líquido prateado e misterioso, liquido que não é líquido, sólido que não é sólido. E bebe mais desse líquido fabuloso, na impregnação pura dos que amam loucamente.E segue assim, sublimando as multidões, tão porosa e tão profunda, e segue assim, atravessada de sensações, tão melancólicas e tão singelas.E sobe mais, liberando as vibrações, dos corpos que sentem mais do que a noite. E chama ela, um pouco de atenção, pra essa luz amarela, redonda e selvagem, bem na minha escuridão.

Allana Moreira e Silva

Araras Versáteis - Hilda Hilst



Araras versáteis. Prato de anêmonas.
O efebo passou entre as meninas trêfegas.
O rombudo bastão luzia na mornura das calças e do dia.
Ela abriu as coxas de esmalte, louça e umedecida laca
E vergastou a cona com minúsculo açoite.
O moço ajoelhou-se enfuçando-lhe os meios
E uma língua de agulha, de fogo, de molusco
Empapou-se de mel nos refolhos robustos.
Ela gritava um extase de gosmas e de lírios
Quando no instante alguém
Numa manobra ágil de jovem marinheiro
Arrancou do efebo as luzidias calças
Suspendeu-lhe o traseiro e aaaaaiiiii....
E gozaram os três entre os pios dos pássaros
Das araras versáteis e das meninas trêfegas.

Hilda Hilst

Virado




Quando cheguei tudo estava virado. Virou minha vida, meu sexo, minha emoção. Virou as panelas da cozinha, a televisão, as minhas roupas no armário. Virou meus cabelos e quebrou a Nossa Senhora da estante. Virou as coisas todas podendo todas serem viradas.Virou minha saliva enfurecida e transformou-a em mel. Virou meu olhar resignado e transformou-o em luz. Virou minha paixão e transformou-a numa maior ainda. Estava tudo virado, absolutamente virado. Quebrou meus membros e arrancou meus dentes. Via-me paulatinamente sendo reconstruída, nova e igual, pura e nada mais.Quando cheguei tudo virou tesão. Virou cachaça com feijão. Virou. Virou sabor e pimenta de cheiro. Virou. Virou meus seios como duas hélices. Virou meu nariz, minha língua, meus olhos. Virou o monstro doce. O monstro que não é monstro. Virou o protomutante embevecido da aurora. Virou o louco endiabrado. Virou a rosa cheirosa e a lama mole. Virou a serpente, o lobo, a raposa. Virou o bicho selvagem. Virou regulação. Auto-regulação. Cosmo, microcosmo, macrocosmo. Virou a sem culpa. O amor sublime. Virou a lágrima sonora, o choro derramado. Pranto de felicidade. Descarga energética. Fim da escassez. Fim do medo. Virou o grito suave, a ferida e tudo mais. Os pontos de ouro, a poesia no corpo.Virou. Virou tudo. Completamente.
Allana Moreira e Silva